Reflexões acerca da transmissibilidade dos bens digitais aos herdeiros no inventário e partilha

Reflexões acerca da transmissibilidade dos bens digitais aos herdeiros no inventário e partilha” está entre os destaques da 5

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Há um dilema entre preservar a privacidade e publicizar a intimidade. Em um primeiro momento, parece razoável preservar a privacidade da pessoa falecida de ter os seus arquivos digitais intocáveis (páginas sociais, WhatsApp, e-mail) visando assegurar direitos fundamentais de honra e dignidade, mas indaga-se: esta vedação de publicidade continua existindo se o acesso aos arquivos digitais fosse determinante para descobrir, por exemplo, o motivo de um suicídio ou homicídio? Neste embate, o que deve prevalecer?

No Brasil, frisa-se, ainda não há legislação uniforme sobre o tema que vem sendo analisado caso a caso e tampouco legislação específica sobre o assunto.

Outros países como a Alemanha já têm regramento próprio sobre a herança digital, admitindo que a sucessão se dá a título universal de todo acervo, levando em consideração o caso paradigmático ocorrido em 2015 em Berlim, em que uma menina cometeu suicídio diante de um condutor na linha do metrô, que pleiteou indenização por danos morais em face dos pais da menina falecida, pois o Facebook não deixou os pais verificarem o perfil dela para tentarem descobrir a real causa da morte da filha.

Na Espanha, a Ley Orgánica de Protección de Datos y de Garantías de los Derechos Digitales¹ prevê que o conteúdo digital da pessoa falecida passará aos familiares e eles poderão decidir se irão manter ou eliminar o conteúdo digital, salvo se houver determinação contrária deixada pelo titular falecido.

Uma questão para reflexão é se haveria diferença, para fins de figurar no espólio, entre um bem físico com o mesmo conteúdo de um bem digital, como por exemplo, um diário de papel com as mensagens particulares junto com outros bens móveis que guarnecem a casa do falecido que serão todos objetos de herança e se caso este mesmo diário estivesse em meio digital, que daí haveria um tratamento diferenciado a depender de como se estabilizarem as normativas brasileiras sobre o tema.

Neste momento, paira a indagação sobre qual a diferença entre um diário físico que será transmitido aos herdeiros, pois guarnece o bem imóvel, para um diário digital com idêntico conteúdo, que talvez não seja transmitido por falta de previsão legal?²

Tem-se que a intimidade é um direito fundamental e questiona-se:
caso os familiares herdeiros tenham acesso às contas e páginas da internet do ente falecido, estaria sendo violado este direito protegido constitucionalmente? O autor da herança iria autorizar esse acesso se soubesse que seus herdeiros poderiam ler ou até divulgar suas conversas particulares na internet? É constitucional ou estaria violando direitos da personalidade além da intimidade como o nome, a privacidade e a imagem?

Neste sentido, dispõem Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald que “é de se destacar, portanto, que os direitos da personalidade são, de fato, intransmissíveis. Todavia, malgrado essa intransmissibilidade (CC, art. 11), é possível que os seus reflexos patrimoniais sejam transmitidos para o espólio (sucessores) do falecido”,³ como no caso de pleitear uma indenização pela violação de um direito.

Se os direitos da personalidade morrem com a pessoa detentora deles, sob este argumento isolado parece confortável o entendimento de que é possível passar o acervo digital aos herdeiros sem maiores preocupações de infringir direitos da personalidade do falecido titular das informações. Por outro lado, se os direitos da personalidade de alguma forma se projetarem para depois da morte, não seria possível transmitir o acervo digital porque os herdeiros teriam acesso a um conteúdo que violaria direitos constitucionais. 

Considerando-se o direito à intimidade como o modo de ser da pessoa e o afastamento do conhecimento de outros indivíduos sobre assuntos que se referem somente a ela,⁴ não pode esta garantia ser afastada pelo falecimento do titular do direito.

Ressalta-se que se a pessoa deixar em testamento um legado sobre quem poderá acessar a página da internet e outros ativos digitais isso seria um respaldo para os herdeiros acessarem esses arquivos caso seja possível esta transmissão.

Neste diapasão, verifica-se um potencial conflito entre o direito das coisas para os direitos da personalidade em que se enfrenta o que são bens que compõem o espólio e o que são os direitos resguardados do falecido que não irão fazer parte dele.

A autonomia negocial sobre os direitos da personalidade prevista no art. 11 do Código Civil que prevê “Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária” é desmascarada pela realidade social, ao ponto de se buscar na doutrina mitigações ao dispositivo legal, uma vez que a autonomia para escolher como realizar mais adequadamente sua personalidade faz parte da própria tutela da personalidade.⁵

Há um tempo tramitam no Congresso Nacional projetos que versam sobre a herança digital, como por exemplo o Projeto de Lei (PL) n. 4.099-B, de 2012, de autoria do Deputado Federal Jorginho Mello e o PL n. 4.847/2012,⁶ de autoria do Deputado Federal Marçal Filho, apensado ao primeiro. Ambos visam alterar, respectivamente, os arts. 1.788 e 1.797 do Código Civil brasileiro, para tratar dos aspectos da herança digital. 

O PL n. 4.099-B/2012 visa acrescer parágrafo único no art. 1.788 do Código Civil, com a seguinte redação: “Serão transmitidos aos herdeiros todos os conteúdos de contas ou arquivos digitais do autor da herança” e no mesmo sentido está o PL n. 3.050/2020 do Deputado Gilberto Abramo. 

Em sentido contrário foi apresentado PL n. 7.742/2017 pelo Deputado Alfredo Nascimento, visando alterar a Lei n. 12.965, de 23 de abril de 2014 – Marco Civil da Internet, a fim de incluir o art. 10-A prevendo, em suma, que os provedores de aplicações de internet devem excluir as respectivas contas de usuários brasileiros mortos imediatamente após a comprovação do óbito. 

Diante da falta de regulamentação nacional, algumas plataformas possuem um termo de aceite de que a conta será do titular da página, mas as postagens feitas passam a ser de propriedade da plataforma e isso pode ter reflexos diretos no acervo do inventário. 

Ao passo que outras plataformas, como o Google, possibilitam a indicação de contato de um possível herdeiro e, ainda, o Instagram e Facebook também possibilitam a nomeação de contato como herdeiro, mas informam que nem mesmo por decisão judicial será possível transmitir determinadas informações, além da página social ser transformada em memorial.

Para melhor diferenciação de bens digitais, classificam-se em três grupos: (1) bem digital patrimonial: é o bem digital com caráter financeiro, como moedas virtuais, bitcoins, milhas, sites, aplicativos, cupons eletrônicos e bens utilizados dentro de economias virtuais de jogo on-line; (2) bem digital com caráter personalíssimo: não possuem cunho econômico, como perfis e contas em redes sociais em geral e (3) bem digital dúplice, híbrido ou patrimonial-existencial:⁷  tem aspectos do direito personalíssimo que, segundo art. 11 do Código Civil, são intransmissíveis, mas possuem valor financeiro, como perfis de blogueiro ou influenciador digital. 

Diante dos direitos patrimoniais e existenciais, verifica-se que conforme entendimento de Livia Teixeira Leal “não se pode ignorar que alguns direitos são personalíssimos, e, portanto, intransmissíveis, extinguindo-se com a morte do titular, não sendo objeto de sucessão e não integrando o acervo sucessório por ele deixado”.⁸

Surge daí a importância do consentimento do titular ainda em vida, mas caso tal declaração ou comportamento expresso não ocorram ou estejam maculados pela anulabilidade, pela nulidade ou pela ineficácia, todo acervo digital que seja expressão da personalidade não deve ser alterado, visto ou compartilhado por quem quer que seja.⁹

A privacidade está posta expressamente no art. 5º, inciso X da Constituição Federal, no art. 21 do Código Civil e nos arts. 7º, inciso I, 21 e 23 da Lei do Marco Civil da Internet – Lei n. 12.965/2014, sendo considerada inviolável e de observância obrigatória pelos provedores de aplicações de internet, ensejando a responsabilização civil por conteúdo que viole direito de terceiro (art. 21 da Lei n. 12.965/2014). 

A Constituição Federal já prevê que há proibição de um terceiro de ter acesso às comunicações telefônicas sem autorização judicial em seu art. 5º, inciso XII, e considerando que na atualidade as ligações em sua maioria foram substituídas por mensagens de texto ou áudio deve ser repensado se esta autorização judicial estaria estendida hoje para acessar aplicativos de mensagens de terceiros. 

Assim, se permitido aos herdeiros o acesso às contas virtuais do falecido também se estará concedendo o acesso às informações daquela outra pessoa que trocou a mensagem com o falecido de forma particular. ¹⁰

Analisando a norma existente que se aproxima do tema em estudo, nota-se que a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) – Lei n. 13.709/2018 tem grande contribuição neste tema, pois traça importantes diretrizes sobre os dados pessoais que estão diretamente relacionados ao direito da personalidade. O art. 5º, inciso I da Lei n. 13.709/2018, define dado pessoal como a “informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável”.

Diante da ausência de previsão expressa de aplicação da LGPD às pessoas falecidas, tem-se a questão se os dados pessoais dispostos na referida lei abrangem os dados das pessoas mortas.¹¹

Na jurisprudência, têm-se casos isolados acerca do assunto, como por exemplo, a situação de uma esposa que precisava acessar o e-mail do marido falecido para resgatar a finalização de um negócio jurídico que ele havia feito com terceiros para fins de inventário e a plataforma Yahoo negou o acesso, mas foi revertido em juízo, que permitiu o acesso da esposa a todos os e-mails do marido naquele período e não apenas com aquele determinado destinatário.¹²

Verifica-se a necessidade de uniformizar a matéria para que deixem de existir decisões isoladas e o Brasil possa evoluir com normativa própria para casos envolvendo a herança digital, pois a relação entre as pessoas se modificou: não se usa mais locadora de filmes, pois eles estão disponíveis em plataformas digitais, bem assim acontece com as locações de casas, com aplicativos de viagem, é indiscutível que hoje as relações mudaram e o contato passou a ser mais digital do que presencial. 

_________________________________
¹ Ley Orgánica 3/2018: Artículo 96. Derecho al testamento digital. 1. El acceso a contenidos gestionados por prestadores de servicios de la sociedad de la información sobre personas fallecidas se regirá por las siguientes reglas: a) Las personas vinculadas al fallecido por razones familiares o de hecho, así como sus herederos podrán dirigirse a los prestadores de servicios de la sociedad de la información al objeto de acceder a dichos contenidos e impartirles las instrucciones que estimen oportunas sobre su utilización, destino o supresión. Como excepción, las personas mencionadas no podrán acceder a los contenidos del causante, ni solicitar su modificación o eliminación, cuando la persona fallecida lo hubiese prohibido expresamente o así lo establezca una ley. Dicha prohibición no afectará al derecho de los herederos a acceder a los contenidos que pudiesen formar parte del caudal relicto. Disponível em: <https://www.boe.es/buscar/pdf/2018/BOE-A-2018–16673-consolidado.pdf> Acesso em 15 maio 2022.

² Várias histórias emblemáticas foram descobertas por cartas ou diários que contaram a realidade de uma determinada época, como o diário de Anne Frank, que foi encontrado por Miep Gies e Bep Voskuijl, em 1945, e tornou-se uma das histórias mais famosas mundialmente ocorrida durante a perseguição nazista na Segunda
Guerra Mundial.

³ FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB. 15. ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 191.
 
⁴ DE CUPIS, Adriano. Os direitos da personalidade. Trad. Afonso Celso Furtado Rezende. 2. ed. São Paulo: Quorum, 2008, p. 139.
 
⁵ TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; KONDER, Carlos Nelson. Situações jurídicas dúplices: controvérsias na nebulosa fronteira entre patrimonialidade e extrapatrimonialidade. In: TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz Edison (Coord.). Diálogos sobre direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2012, v. III, p. 10. 12
 
⁶ Dispõe o PL n. 4.847/2012 que sejam criados os seguintes artigos ao Código Civil: Art. 1.797-A. A herança digital defere-se como o conteúdo intangível do falecido, tudo o que é possível guardar ou acumular em espaço virtual, nas condições seguintes: I – senhas; II – redes sociais; III – contas da Internet; IV – qualquer bem e serviço virtual e digital de titularidade do falecido. Art. 1.797-B. Se o falecido, tendo capacidade para testar, não o tiver feito, a herança será transmitida aos herdeiros legítimos. Art. 1.797-C. Cabe ao herdeiro: I – definir o destino das contas do falecido; a) – transformá-las em memorial, deixando o acesso restrito a amigos confirmados e mantendo apenas o conteúdo principal ou; b) – apagar todos os dados do usuário ou; c) – remover a conta do antigo usuário.
 
⁷  ZAMPIER, Bruno Torquato. Bens digitais. Indaiatuba, São Paulo: Foco Jurídico, 2017.
 
⁸  LEAL, Livia Teixeira. Internet e morte do usuário: propostas para o tratamento jurídico post mortem do
conteúdo inserido na rede. Rio de Janeiro: LMJ Mundo Jurídico, 2018, p. 38.
 
⁹ FROTA, Pablo Malheiros da Cunha; AGUIRRE, João Ricardo Brandão; PEIXOTO, Maurício Muriak de Fernandes e. Constituição, Economia e Desenvolvimento: Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Curitiba, v. 10, n. 19, p. 601, jul./dez. 2018.

¹⁰ BRANCO, Sérgio. Memória e esquecimento na internet. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2017, p. 117.

¹¹ Neste sentido, o Regulamento n. 2016/679 – Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia possui a previsão expressa de que a proteção dos dados pessoais não se aplica às pessoas mortas (item n. 27). “Item 27. O presente regulamento não se aplica aos dados pessoais de pessoas falecidas. Os Estados-Membros poderão estabelecer regras para o tratamento dos dados pessoais de pessoas falecidas.”

¹² TJSP. Processo n. 1036531-51.2018.8.26.0224 em 27.2.2020 da 10ª Vara Cível DA Comarca de Guarulhos

Autores
Larissa Prado Santana
Diogo Luiz Araújo de Benevides Covêllo

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